Solos em Copa
Márcia Nathansohn era uma mulher vaidosa. Sempre gostou de se vestir bem, se arrumar, e tinha uma leve fixação por espelhos. Geralmente não demorava muito para se arrumar como outras mulheres, era decidida no que queria, e muito prática. Mas se entretia muito facilmente com a sua imagem no espelho e o som da própria voz, às vezes passando horas se olhando, examinando cada detalhe de seu corpo, tentando descobrir qual era seu melhor ângulo, e quais expressões faciais e corporais lhe favoreciam mais.
Mas com o passar dos anos, ela foi deixando de sentir o prazer que possuia ao se mirar no espelho. Com o surgimento das primeiras rugas, ela começou com muita atenção, analisando-as e tentando descobrir como diminuir seu impacto em suas feições. Depois, passou a considerá-las irremediáveis, e como elas eram um desagrado de se ver, passou a não encará-las de frente. Outrora encarava toda sua figura, seu corpo de cima a baixo, mas agora tentava se concentrar apenas nos seus olhos, de cor azul como um mar caribenho, que com o passar do tempo foram se tornando cada vez mais densos. Márcia ouvira que eles são como uma espécie de janela para a alma, e assim tornou-se mais introspectiva tentando buscar o desenvolvimento dessa janela. Ela que uma vez mostrava seus sentimentos na sua superfície (pois apenas aí os possuía), passou a ser mais profunda, e a medida que se aprofundava, tornou-se quase indecifrável. Apenas através de seus olhos cada vez mais densos conseguia mostrá-los.
Anos, décadas atrás, Márcia fazia parte da glamourosa vida do bairro, sendo uma das modistas mais cobiçadas da época, pois em criações únicas que eram inspiradas nas melhores revistas de moda européia, adaptava de forma chic , criando um estilo único dela, que tornou-se cobiçado pela sociedade da época. Mas com o tempo, e o trabalho exagerado de anos, desenvolveu dores por movimentos repetitivos nas mãos e braços. A qualidade de seu trabalho caiu, e independente disso, a demanda por costureiras como ela, não era a mesma de antes, portanto, aposentou-se.
Como lembrança daquela época, tinha apenas o seu pequeno e conveniente conjugado, que comprara ainda na época que ganhava bastante dinheiro atendendo a alta sociedade, em que fazia desde vestidos para festas black-tie à fantasias para os bailes de carnaval no Theatro Municipal e no Copacabana Palace.
Voltava de uma consulta ao médico em Botafogo, naquele final de tarde chuvoso, e pegou um ônibus para voltar para casa. Sentou-se ao lado de uma jovem, que aparentava ter por volta de 26 anos, muito bonita, que a fez lembrar de si mesma em outra época. Sentou-se no ônibus e tentou acomodar-se naquele pequeno banco, abraçando sua bolsa cheia de remédios, pois acabara de passar na farmácia. Encostou-se, e acidentalmente roçou seu braço no da jovem ao seu lado. Com a visão periférica, viu que ela sentiu-se incomodada, pois fez como se limpasse a região em que seus braços se tocaram. Márcia não se desculpou. Sentiu-se mal por de repente ter se tornado motivo de asco para alguém, mas lembrou-se de quando tinha a idade daquela jovem, e de que sua atitude não era muito diferente. Talvez pela criação que tivera, ela sempre teve esse tipo de atitude durante a juventude. Seus pais, imigrantes poloneses, sempre fizeram questão de mater uma certa distância de contatos físicos , apesar de sua mãe, uma senhora judia muito grande, sempre ser muito emotiva entre os filhos. Ela se lembrou de quando resolveu sair de casa e não se casar, sua mãe deu-lhe um abraço apertado, chorosa, com medo da filha tornar-se uma "perdida" e nunca mais conseguir se casar. Márcia se sentiu tão incomodada com a atitude materna, que tentou se afastar o máximo possível de novas demonstrações de afeto tão profundas e incômodas. Ao chegar no apartamento que alugou, na noite de 15 de setembro de 1952, Márcia Nathansohn tomou um banho para tirar aquelas energias que lhe foram inconvenientemente passadas, e que agora sentia-as impregnadas em sua pele.
Ela olhou ao redor, as pessoas proximas e perdeu-se encarando dois rapazes entretidos conversando animadamente - aquela beleza da vivacidade despreocupada jovem! Márcia então afundou-se em lembranças, e ao mesmo tempo que passava por determinados lugares de Copacabana, dentro do ônibus, ela tentava resgatar a memória de como aparentava tais lugares naquela época em que fora tão feliz e independente. Não que ela não o fosse hoje, continuava independente, mas havia perdido o orgulho de ser quem era. Sentiu-se triste agora, por não mais ser bela.
Ainda presa às memórias do passado, Márcia viu que aquela garota do seu lado tinha se levantado e pedia licensa à ela, para poder passar. Foi então que se deu conta de que já tinha chegado ao seu ponto. Levantou-se e quando o ônibus parou, procurou com suas mãos enrugadas o guarda-chuva que havia displiscentemente enfiado na bolsa. Abriu-o e desceu lentamente as escadas do ônibus que para seus pés idosos, pareciam escorregadios demais por estarem molhados. Caminhou lentamente até seu prédio. O portão acabara de bater, mas o gentil porteiro que ali trabalhava desde antes da mudança de Márcia em 1968, prontificou-se em abrí-lo. Márcia agradeceu e deu "boa tarde" . Subiu o pequeno lance de escadas até o elevador social e viu aquela jovem que estava ao seu lado no ônibus. Cumprimentou-a e voltou a se perder em pensamentos e memórias, e só acordou quando a menina lhe deu tchau. Tentou responder, mas a porta do elevador logo depois bateu, e tornou a subir agora em direção ao 6o. andar. Seu andar.
Fazia o mesmo caminho há quase 40 anos, por aqueles corredores. Chegou em frente a sua porta, e abriu-a. Seu apartamento era como um pequeno museu da história carioca de meados do século XX. O chero inevitável de naftalina, que Márcia usava para evitar perder para as traças tantas peças de roupas que havia cuidadosamente feito durante tantos anos. As paredes recheadas de porta-retratos com fotos preto e branco hoje em especial chamaram-lhe a atenção. Márcia se sentia saudosista. Mirou bem as fotos, cada uma delas, aparecendo às vezes sozinha, às vezes ao lado das socialites e dos maiores playboys de 50 anos atrás. Ao lado de uma foto sua com um desses rapazes que foi namorado seu, ela o viu. Sozinha na foto, vestindo-o. Um vestido preto feito por ela, para um baile no Copacabana Palace, que fora convidada há mais de 50 anos atrás, quando tornara-se famosa pelos seus vestidos e habilidades na costura. Ela o amou tanto!
Pegou a foto com ternura e olhou bem no fundo dos olhos da jovem que fora um dia. Alguns minutos depois, Márcia teve uma idéia. Pôs-se a procurar pelo tal vestido. Abriu antigos baús, algumas gavetas, e subitamente lembrou-se. Dirigiu-se lentamente até um enorme baú de madeira com excitação. Abriu-o, e o cheiro de naftalina inundou o ambiente. Vestiu-o. Ela sempre foi uma mulher esbelta, e apesar dos anos passados, continuava, e o vestido, pois, serviu.
Márcia agora se dirigia ao grande espelho encostado na parede que há mais de décadas não dava atenção. Seu coração batia forte quando diante dele chegou. Comtemplou sua própria figura. Olhou bem no fundo dos seus olhos, e foi afastando a visão para que visse-se por inteiro. Ela então sorriu e pensou,
"Eu nunca deixei de ser bela. Eu apenas mudei."