Wednesday, July 18, 2007

Solos em Copa

Valsa da Mudança e do Tempo
Solo de Flauta 01

Márcia Nathansohn era uma mulher vaidosa. Sempre gostou de se vestir bem, se arrumar, e tinha uma leve fixação por espelhos. Geralmente não demorava muito para se arrumar como outras mulheres, era decidida no que queria, e muito prática. Mas se entretia muito facilmente com a sua imagem no espelho e o som da própria voz, às vezes passando horas se olhando, examinando cada detalhe de seu corpo, tentando descobrir qual era seu melhor ângulo, e quais expressões faciais e corporais lhe favoreciam mais.

Mas com o passar dos anos, ela foi deixando de sentir o prazer que possuia ao se mirar no espelho. Com o surgimento das primeiras rugas, ela começou com muita atenção, analisando-as e tentando descobrir como diminuir seu impacto em suas feições. Depois, passou a considerá-las irremediáveis, e como elas eram um desagrado de se ver, passou a não encará-las de frente. Outrora encarava toda sua figura, seu corpo de cima a baixo, mas agora tentava se concentrar apenas nos seus olhos, de cor azul como um mar caribenho, que com o passar do tempo foram se tornando cada vez mais densos. Márcia ouvira que eles são como uma espécie de janela para a alma, e assim tornou-se mais introspectiva tentando buscar o desenvolvimento dessa janela. Ela que uma vez mostrava seus sentimentos na sua superfície (pois apenas aí os possuía), passou a ser mais profunda, e a medida que se aprofundava, tornou-se quase indecifrável. Apenas através de seus olhos cada vez mais densos conseguia mostrá-los.

Anos, décadas atrás, Márcia fazia parte da glamourosa vida do bairro, sendo uma das modistas mais cobiçadas da época, pois em criações únicas que eram inspiradas nas melhores revistas de moda européia, adaptava de forma chic , criando um estilo único dela, que tornou-se cobiçado pela sociedade da época. Mas com o tempo, e o trabalho exagerado de anos, desenvolveu dores por movimentos repetitivos nas mãos e braços. A qualidade de seu trabalho caiu, e independente disso, a demanda por costureiras como ela, não era a mesma de antes, portanto, aposentou-se.

Como lembrança daquela época, tinha apenas o seu pequeno e conveniente conjugado, que comprara ainda na época que ganhava bastante dinheiro atendendo a alta sociedade, em que fazia desde vestidos para festas black-tie à fantasias para os bailes de carnaval no Theatro Municipal e no Copacabana Palace.

Voltava de uma consulta ao médico em Botafogo, naquele final de tarde chuvoso, e pegou um ônibus para voltar para casa. Sentou-se ao lado de uma jovem, que aparentava ter por volta de 26 anos, muito bonita, que a fez lembrar de si mesma em outra época. Sentou-se no ônibus e tentou acomodar-se naquele pequeno banco, abraçando sua bolsa cheia de remédios, pois acabara de passar na farmácia. Encostou-se, e acidentalmente roçou seu braço no da jovem ao seu lado. Com a visão periférica, viu que ela sentiu-se incomodada, pois fez como se limpasse a região em que seus braços se tocaram. Márcia não se desculpou. Sentiu-se mal por de repente ter se tornado motivo de asco para alguém, mas lembrou-se de quando tinha a idade daquela jovem, e de que sua atitude não era muito diferente. Talvez pela criação que tivera, ela sempre teve esse tipo de atitude durante a juventude. Seus pais, imigrantes poloneses, sempre fizeram questão de mater uma certa distância de contatos físicos , apesar de sua mãe, uma senhora judia muito grande, sempre ser muito emotiva entre os filhos. Ela se lembrou de quando resolveu sair de casa e não se casar, sua mãe deu-lhe um abraço apertado, chorosa, com medo da filha tornar-se uma "perdida" e nunca mais conseguir se casar. Márcia se sentiu tão incomodada com a atitude materna, que tentou se afastar o máximo possível de novas demonstrações de afeto tão profundas e incômodas. Ao chegar no apartamento que alugou, na noite de 15 de setembro de 1952, Márcia Nathansohn tomou um banho para tirar aquelas energias que lhe foram inconvenientemente passadas, e que agora sentia-as impregnadas em sua pele.

Ela olhou ao redor, as pessoas proximas e perdeu-se encarando dois rapazes entretidos conversando animadamente - aquela beleza da vivacidade despreocupada jovem! Márcia então afundou-se em lembranças, e ao mesmo tempo que passava por determinados lugares de Copacabana, dentro do ônibus, ela tentava resgatar a memória de como aparentava tais lugares naquela época em que fora tão feliz e independente. Não que ela não o fosse hoje, continuava independente, mas havia perdido o orgulho de ser quem era. Sentiu-se triste agora, por não mais ser bela.

Ainda presa às memórias do passado, Márcia viu que aquela garota do seu lado tinha se levantado e pedia licensa à ela, para poder passar. Foi então que se deu conta de que já tinha chegado ao seu ponto. Levantou-se e quando o ônibus parou, procurou com suas mãos enrugadas o guarda-chuva que havia displiscentemente enfiado na bolsa. Abriu-o e desceu lentamente as escadas do ônibus que para seus pés idosos, pareciam escorregadios demais por estarem molhados. Caminhou lentamente até seu prédio. O portão acabara de bater, mas o gentil porteiro que ali trabalhava desde antes da mudança de Márcia em 1968, prontificou-se em abrí-lo. Márcia agradeceu e deu "boa tarde" . Subiu o pequeno lance de escadas até o elevador social e viu aquela jovem que estava ao seu lado no ônibus. Cumprimentou-a e voltou a se perder em pensamentos e memórias, e só acordou quando a menina lhe deu tchau. Tentou responder, mas a porta do elevador logo depois bateu, e tornou a subir agora em direção ao 6o. andar. Seu andar.

Fazia o mesmo caminho há quase 40 anos, por aqueles corredores. Chegou em frente a sua porta, e abriu-a. Seu apartamento era como um pequeno museu da história carioca de meados do século XX. O chero inevitável de naftalina, que Márcia usava para evitar perder para as traças tantas peças de roupas que havia cuidadosamente feito durante tantos anos. As paredes recheadas de porta-retratos com fotos preto e branco hoje em especial chamaram-lhe a atenção. Márcia se sentia saudosista. Mirou bem as fotos, cada uma delas, aparecendo às vezes sozinha, às vezes ao lado das socialites e dos maiores playboys de 50 anos atrás. Ao lado de uma foto sua com um desses rapazes que foi namorado seu, ela o viu. Sozinha na foto, vestindo-o. Um vestido preto feito por ela, para um baile no Copacabana Palace, que fora convidada há mais de 50 anos atrás, quando tornara-se famosa pelos seus vestidos e habilidades na costura. Ela o amou tanto!

Pegou a foto com ternura e olhou bem no fundo dos olhos da jovem que fora um dia. Alguns minutos depois, Márcia teve uma idéia. Pôs-se a procurar pelo tal vestido. Abriu antigos baús, algumas gavetas, e subitamente lembrou-se. Dirigiu-se lentamente até um enorme baú de madeira com excitação. Abriu-o, e o cheiro de naftalina inundou o ambiente. Vestiu-o. Ela sempre foi uma mulher esbelta, e apesar dos anos passados, continuava, e o vestido, pois, serviu.

Márcia agora se dirigia ao grande espelho encostado na parede que há mais de décadas não dava atenção. Seu coração batia forte quando diante dele chegou. Comtemplou sua própria figura. Olhou bem no fundo dos seus olhos, e foi afastando a visão para que visse-se por inteiro. Ela então sorriu e pensou,

"Eu nunca deixei de ser bela. Eu apenas mudei."

Solos em Copa

Concertos na cidade.
Solo I - Piano

Uma chuvinha fina caía lá fora, e seus olhos concentrados miravam aquela constante dança das gotas de água no vidro do ônibus. Antônia suspirou, um suspiro pesado e cansado, se encostou contra o banco do ônibus. Não pensava em nada, não pensava em ninguém, somente em chegar no seu apartamento e poder tomar um belo banho.

O ônibus passava por Botafogo, quando parou e uma senhora aparentando ter mais de 70 anos entrou e ocupou o unico assento vago dentro do ônibus - ao lado de Antônia, que por sua vez olhou com indiferença a senhora que tentava acomodar a bolsa enorme, que obviamente estava mais cheia do que deveria, no colo. A senhora roçou de leve a sua pele enrugada no braço da jovem que estava ao seu lado, enquanto tentava se acomodar no apertado banco de ônibus. Antônia sentiu um calafrio percorrendo a espinha. Ela tinha horror a desconhecidos que a encostassem na rua. Discretamente, levou a mão ao braço, bem no lugar onde aquela velha tinha encostado, e passou de leve, fazendo um movimento como estivesse limpando. A senhora nada reparou, que tentava prestar atenção à rua, para não perder o ponto onde iria descer, esticando seu pescocinho enrugado como uma pequena tartaruga fazendo esforço para andar.

Antônia achou cômica a cena e se riu. Agora tinha sua atenção desperta pela velha, que segurava a bolsa bem apertada contra o corpo, sentada numa posição tímida, acanhada, tentando não ocupar muito espaço naquele ônibus, ao mesmo tempo que tentava não cair no corredor com as curvas feitas bruscamente em absurda velocidade por mais um daqueles motoristas de ônibus insanos cariocas.

A jovem olhou bem o rosto daquela senhora, observando as rugas que se espalhavam por seu pequeno rosto. Seu cabelo era branco com um estranho tom levemente azulado, cacheado mas com um curte ligeiramente arredondado que fazia lembrar uma camada de chantilly em cima de um sorvete. Só faltava uma cereja em cima. Antônia tentou decifrar aquela senhora. Com seu estilo ligeiramente excêntrico, maquiagem ligeiramente carregada, e o odor que ligeramente lembrava um misto de Yves Saint Laurent e Naftalina, ela supos enquanto passavam pelo túnel e chegavam a Barata Ribeiro, que a senhora fazia parte daquele clã de idosos solitários, habitantes de Copacabana, que passavam a vida em uma calma solitária, a caminhar pelas ruas do bairro com seus afazeres, que só Deus sabe.

Desperta de seus devaneios, Antônia percebeu que já estavam próximos à Siqueira Campos, onde deveria descer. Levantou-se de sua cadeira, e pediu licensa a senhora ao seu lado, para poder passar. Eis que ela ao invés de se inclinar para dar passagem, levantou-se e foi em direção a porta de trás do ônibus. Antônia seguiu-a, esperando atrás dela até o ônibus parar e poder descer. Parado, a velha calmamente tirou um guarda-chuva da bolsa e abriu-o, só para depois poder descer lentamente com suas idosas pernas, as escadas do ônibus. Antônia seguiu-a. Apesar de não ser forte a chuva que caía, ela apressou o passo para logo alcançar seu prédio e não se molhar muito, deixando assim aquela senhora para trás junto com suas impressões, histórias e teorias construidas acerca dela. Mas é assim que funcionam os centros cheios de gente - desenvolve-se um interesse momentâneo e superficial sobre pessoas que momentaneamente te cercam, e depois você é obrigado a deixar para trás e esquecer, cada um seguindo sua vida cheia de superficialidades e momentos, mas nunca sendo capaz ou permitido aprofundar-se.

Antônia pensou nisso enquanto apressada caminhava para casa, com uma pequena pasta azul claro de plástico transparente em cima da cabeça, usando para proteger-se da chuva. O porteiro do prédio que ja a tinha avistado fugindo da chuva, abriu o portão antes que ela tivesse pisado na calçada. Deu um "boa tarde" ofegante ao homem e chamou o elevador. Ela morava em um pequeno conjugado, do tamanho de um banheiro, em um daqueles prédios com trezentos apartamentos por andar em Copa.

Enquanto esperava o demorado elevador chegar, Antônia ouviu um sussurro que julgou tratar-se de um "boa tarde", e respondeu olhando pra trás e vendo aquela mesma senhora do ônibus. Sentiu o odor misto de Yves Saint Laurent e Naftalina, era ela mesmo. Silêncio mortal dentro do elevador, e Antônia apertou o 5o. andar, seguida pela senhora que apertou o 6o. O lento elevador seguia pra cima, enquanto o momento de silêncio constrangedor tornava-se peculiar. Antônia aproveitou para obsevar curiosamente a velha, com seu conjunto floral em tons claros, e a bolsa grande e preta, cheia e aberta onde reparou vários sacos plásticos, que julgou tratarem-se de remédios que ela carregava necessariamente dentro da bolsa. E aquele peculiar odor misto que antes sentia-se ligeiramente havia inundado o ambiente. A senhora mantinha-se com seus olhos azuis profundos encarando fixamente a porta do elevador, até que esta abriu-se ao 5o. andar. Antônia disse tchau. Achou ter ouvido um tchau de volta, mas a quase inaudível voz da senhora, e a apressada porta do elevador que se fechava tornaram impossível a certeza.

Chegando em casa, ela despiu-se, e guardou cuidadosamente sua roupa no armário. Abriu um vinho e encheu uma taça, enquanto sentava-se no computador. Inspirada pelo seu peculiar interesse em outro ser-humano, Antônia escreveu suas impressões em seu blog, que ninguém iria ler.

Solos na Cidade

Muitos já escreveram sobre a vida agitada nas cidades modernas. Dos grupos de incontáveis amigos tomando cena em agitados bares, clubes e boates, restaurantes. Eu, como um pretensioso escritor tentei inumeras vezes escrever sobre tais grupos de amigos sempre tão cool e na moda. Mas eu não sou cool. Eu não estou na moda. E eu não tenho grupos de incontáveis amigos.

Como todo escritor para escrever, deveria falar sobre coisas que vivencía e entende, eu passo agora a descrever as pessoas que eu conheço, com sentimentos muito bem conhecidos, tentando trazer conforto a elas, depois de serem tão negligenciadas por escritores que preferem ser cool e da moda. Passo a escrever aqui sobre aqueles que sozinhos seguem, perdidos no meio da multidão. Seus sentimentos, expectativas e emoções. Dores e desamores. Pessoas que você vê dentro do ônibus com a cabeça encostada contra o vidro, mas que não repara ou não dá atenção. Pessoas que sufocam a agonia da solidão, preenchendo a vida com futilidades.

Almas assim. Almas irmãs.
Passo agora a falar de vocês.