Wednesday, July 18, 2007

Solos em Copa

Valsa da Mudança e do Tempo
Solo de Flauta 01

Márcia Nathansohn era uma mulher vaidosa. Sempre gostou de se vestir bem, se arrumar, e tinha uma leve fixação por espelhos. Geralmente não demorava muito para se arrumar como outras mulheres, era decidida no que queria, e muito prática. Mas se entretia muito facilmente com a sua imagem no espelho e o som da própria voz, às vezes passando horas se olhando, examinando cada detalhe de seu corpo, tentando descobrir qual era seu melhor ângulo, e quais expressões faciais e corporais lhe favoreciam mais.

Mas com o passar dos anos, ela foi deixando de sentir o prazer que possuia ao se mirar no espelho. Com o surgimento das primeiras rugas, ela começou com muita atenção, analisando-as e tentando descobrir como diminuir seu impacto em suas feições. Depois, passou a considerá-las irremediáveis, e como elas eram um desagrado de se ver, passou a não encará-las de frente. Outrora encarava toda sua figura, seu corpo de cima a baixo, mas agora tentava se concentrar apenas nos seus olhos, de cor azul como um mar caribenho, que com o passar do tempo foram se tornando cada vez mais densos. Márcia ouvira que eles são como uma espécie de janela para a alma, e assim tornou-se mais introspectiva tentando buscar o desenvolvimento dessa janela. Ela que uma vez mostrava seus sentimentos na sua superfície (pois apenas aí os possuía), passou a ser mais profunda, e a medida que se aprofundava, tornou-se quase indecifrável. Apenas através de seus olhos cada vez mais densos conseguia mostrá-los.

Anos, décadas atrás, Márcia fazia parte da glamourosa vida do bairro, sendo uma das modistas mais cobiçadas da época, pois em criações únicas que eram inspiradas nas melhores revistas de moda européia, adaptava de forma chic , criando um estilo único dela, que tornou-se cobiçado pela sociedade da época. Mas com o tempo, e o trabalho exagerado de anos, desenvolveu dores por movimentos repetitivos nas mãos e braços. A qualidade de seu trabalho caiu, e independente disso, a demanda por costureiras como ela, não era a mesma de antes, portanto, aposentou-se.

Como lembrança daquela época, tinha apenas o seu pequeno e conveniente conjugado, que comprara ainda na época que ganhava bastante dinheiro atendendo a alta sociedade, em que fazia desde vestidos para festas black-tie à fantasias para os bailes de carnaval no Theatro Municipal e no Copacabana Palace.

Voltava de uma consulta ao médico em Botafogo, naquele final de tarde chuvoso, e pegou um ônibus para voltar para casa. Sentou-se ao lado de uma jovem, que aparentava ter por volta de 26 anos, muito bonita, que a fez lembrar de si mesma em outra época. Sentou-se no ônibus e tentou acomodar-se naquele pequeno banco, abraçando sua bolsa cheia de remédios, pois acabara de passar na farmácia. Encostou-se, e acidentalmente roçou seu braço no da jovem ao seu lado. Com a visão periférica, viu que ela sentiu-se incomodada, pois fez como se limpasse a região em que seus braços se tocaram. Márcia não se desculpou. Sentiu-se mal por de repente ter se tornado motivo de asco para alguém, mas lembrou-se de quando tinha a idade daquela jovem, e de que sua atitude não era muito diferente. Talvez pela criação que tivera, ela sempre teve esse tipo de atitude durante a juventude. Seus pais, imigrantes poloneses, sempre fizeram questão de mater uma certa distância de contatos físicos , apesar de sua mãe, uma senhora judia muito grande, sempre ser muito emotiva entre os filhos. Ela se lembrou de quando resolveu sair de casa e não se casar, sua mãe deu-lhe um abraço apertado, chorosa, com medo da filha tornar-se uma "perdida" e nunca mais conseguir se casar. Márcia se sentiu tão incomodada com a atitude materna, que tentou se afastar o máximo possível de novas demonstrações de afeto tão profundas e incômodas. Ao chegar no apartamento que alugou, na noite de 15 de setembro de 1952, Márcia Nathansohn tomou um banho para tirar aquelas energias que lhe foram inconvenientemente passadas, e que agora sentia-as impregnadas em sua pele.

Ela olhou ao redor, as pessoas proximas e perdeu-se encarando dois rapazes entretidos conversando animadamente - aquela beleza da vivacidade despreocupada jovem! Márcia então afundou-se em lembranças, e ao mesmo tempo que passava por determinados lugares de Copacabana, dentro do ônibus, ela tentava resgatar a memória de como aparentava tais lugares naquela época em que fora tão feliz e independente. Não que ela não o fosse hoje, continuava independente, mas havia perdido o orgulho de ser quem era. Sentiu-se triste agora, por não mais ser bela.

Ainda presa às memórias do passado, Márcia viu que aquela garota do seu lado tinha se levantado e pedia licensa à ela, para poder passar. Foi então que se deu conta de que já tinha chegado ao seu ponto. Levantou-se e quando o ônibus parou, procurou com suas mãos enrugadas o guarda-chuva que havia displiscentemente enfiado na bolsa. Abriu-o e desceu lentamente as escadas do ônibus que para seus pés idosos, pareciam escorregadios demais por estarem molhados. Caminhou lentamente até seu prédio. O portão acabara de bater, mas o gentil porteiro que ali trabalhava desde antes da mudança de Márcia em 1968, prontificou-se em abrí-lo. Márcia agradeceu e deu "boa tarde" . Subiu o pequeno lance de escadas até o elevador social e viu aquela jovem que estava ao seu lado no ônibus. Cumprimentou-a e voltou a se perder em pensamentos e memórias, e só acordou quando a menina lhe deu tchau. Tentou responder, mas a porta do elevador logo depois bateu, e tornou a subir agora em direção ao 6o. andar. Seu andar.

Fazia o mesmo caminho há quase 40 anos, por aqueles corredores. Chegou em frente a sua porta, e abriu-a. Seu apartamento era como um pequeno museu da história carioca de meados do século XX. O chero inevitável de naftalina, que Márcia usava para evitar perder para as traças tantas peças de roupas que havia cuidadosamente feito durante tantos anos. As paredes recheadas de porta-retratos com fotos preto e branco hoje em especial chamaram-lhe a atenção. Márcia se sentia saudosista. Mirou bem as fotos, cada uma delas, aparecendo às vezes sozinha, às vezes ao lado das socialites e dos maiores playboys de 50 anos atrás. Ao lado de uma foto sua com um desses rapazes que foi namorado seu, ela o viu. Sozinha na foto, vestindo-o. Um vestido preto feito por ela, para um baile no Copacabana Palace, que fora convidada há mais de 50 anos atrás, quando tornara-se famosa pelos seus vestidos e habilidades na costura. Ela o amou tanto!

Pegou a foto com ternura e olhou bem no fundo dos olhos da jovem que fora um dia. Alguns minutos depois, Márcia teve uma idéia. Pôs-se a procurar pelo tal vestido. Abriu antigos baús, algumas gavetas, e subitamente lembrou-se. Dirigiu-se lentamente até um enorme baú de madeira com excitação. Abriu-o, e o cheiro de naftalina inundou o ambiente. Vestiu-o. Ela sempre foi uma mulher esbelta, e apesar dos anos passados, continuava, e o vestido, pois, serviu.

Márcia agora se dirigia ao grande espelho encostado na parede que há mais de décadas não dava atenção. Seu coração batia forte quando diante dele chegou. Comtemplou sua própria figura. Olhou bem no fundo dos seus olhos, e foi afastando a visão para que visse-se por inteiro. Ela então sorriu e pensou,

"Eu nunca deixei de ser bela. Eu apenas mudei."

Solos em Copa

Concertos na cidade.
Solo I - Piano

Uma chuvinha fina caía lá fora, e seus olhos concentrados miravam aquela constante dança das gotas de água no vidro do ônibus. Antônia suspirou, um suspiro pesado e cansado, se encostou contra o banco do ônibus. Não pensava em nada, não pensava em ninguém, somente em chegar no seu apartamento e poder tomar um belo banho.

O ônibus passava por Botafogo, quando parou e uma senhora aparentando ter mais de 70 anos entrou e ocupou o unico assento vago dentro do ônibus - ao lado de Antônia, que por sua vez olhou com indiferença a senhora que tentava acomodar a bolsa enorme, que obviamente estava mais cheia do que deveria, no colo. A senhora roçou de leve a sua pele enrugada no braço da jovem que estava ao seu lado, enquanto tentava se acomodar no apertado banco de ônibus. Antônia sentiu um calafrio percorrendo a espinha. Ela tinha horror a desconhecidos que a encostassem na rua. Discretamente, levou a mão ao braço, bem no lugar onde aquela velha tinha encostado, e passou de leve, fazendo um movimento como estivesse limpando. A senhora nada reparou, que tentava prestar atenção à rua, para não perder o ponto onde iria descer, esticando seu pescocinho enrugado como uma pequena tartaruga fazendo esforço para andar.

Antônia achou cômica a cena e se riu. Agora tinha sua atenção desperta pela velha, que segurava a bolsa bem apertada contra o corpo, sentada numa posição tímida, acanhada, tentando não ocupar muito espaço naquele ônibus, ao mesmo tempo que tentava não cair no corredor com as curvas feitas bruscamente em absurda velocidade por mais um daqueles motoristas de ônibus insanos cariocas.

A jovem olhou bem o rosto daquela senhora, observando as rugas que se espalhavam por seu pequeno rosto. Seu cabelo era branco com um estranho tom levemente azulado, cacheado mas com um curte ligeiramente arredondado que fazia lembrar uma camada de chantilly em cima de um sorvete. Só faltava uma cereja em cima. Antônia tentou decifrar aquela senhora. Com seu estilo ligeiramente excêntrico, maquiagem ligeiramente carregada, e o odor que ligeramente lembrava um misto de Yves Saint Laurent e Naftalina, ela supos enquanto passavam pelo túnel e chegavam a Barata Ribeiro, que a senhora fazia parte daquele clã de idosos solitários, habitantes de Copacabana, que passavam a vida em uma calma solitária, a caminhar pelas ruas do bairro com seus afazeres, que só Deus sabe.

Desperta de seus devaneios, Antônia percebeu que já estavam próximos à Siqueira Campos, onde deveria descer. Levantou-se de sua cadeira, e pediu licensa a senhora ao seu lado, para poder passar. Eis que ela ao invés de se inclinar para dar passagem, levantou-se e foi em direção a porta de trás do ônibus. Antônia seguiu-a, esperando atrás dela até o ônibus parar e poder descer. Parado, a velha calmamente tirou um guarda-chuva da bolsa e abriu-o, só para depois poder descer lentamente com suas idosas pernas, as escadas do ônibus. Antônia seguiu-a. Apesar de não ser forte a chuva que caía, ela apressou o passo para logo alcançar seu prédio e não se molhar muito, deixando assim aquela senhora para trás junto com suas impressões, histórias e teorias construidas acerca dela. Mas é assim que funcionam os centros cheios de gente - desenvolve-se um interesse momentâneo e superficial sobre pessoas que momentaneamente te cercam, e depois você é obrigado a deixar para trás e esquecer, cada um seguindo sua vida cheia de superficialidades e momentos, mas nunca sendo capaz ou permitido aprofundar-se.

Antônia pensou nisso enquanto apressada caminhava para casa, com uma pequena pasta azul claro de plástico transparente em cima da cabeça, usando para proteger-se da chuva. O porteiro do prédio que ja a tinha avistado fugindo da chuva, abriu o portão antes que ela tivesse pisado na calçada. Deu um "boa tarde" ofegante ao homem e chamou o elevador. Ela morava em um pequeno conjugado, do tamanho de um banheiro, em um daqueles prédios com trezentos apartamentos por andar em Copa.

Enquanto esperava o demorado elevador chegar, Antônia ouviu um sussurro que julgou tratar-se de um "boa tarde", e respondeu olhando pra trás e vendo aquela mesma senhora do ônibus. Sentiu o odor misto de Yves Saint Laurent e Naftalina, era ela mesmo. Silêncio mortal dentro do elevador, e Antônia apertou o 5o. andar, seguida pela senhora que apertou o 6o. O lento elevador seguia pra cima, enquanto o momento de silêncio constrangedor tornava-se peculiar. Antônia aproveitou para obsevar curiosamente a velha, com seu conjunto floral em tons claros, e a bolsa grande e preta, cheia e aberta onde reparou vários sacos plásticos, que julgou tratarem-se de remédios que ela carregava necessariamente dentro da bolsa. E aquele peculiar odor misto que antes sentia-se ligeiramente havia inundado o ambiente. A senhora mantinha-se com seus olhos azuis profundos encarando fixamente a porta do elevador, até que esta abriu-se ao 5o. andar. Antônia disse tchau. Achou ter ouvido um tchau de volta, mas a quase inaudível voz da senhora, e a apressada porta do elevador que se fechava tornaram impossível a certeza.

Chegando em casa, ela despiu-se, e guardou cuidadosamente sua roupa no armário. Abriu um vinho e encheu uma taça, enquanto sentava-se no computador. Inspirada pelo seu peculiar interesse em outro ser-humano, Antônia escreveu suas impressões em seu blog, que ninguém iria ler.

Solos na Cidade

Muitos já escreveram sobre a vida agitada nas cidades modernas. Dos grupos de incontáveis amigos tomando cena em agitados bares, clubes e boates, restaurantes. Eu, como um pretensioso escritor tentei inumeras vezes escrever sobre tais grupos de amigos sempre tão cool e na moda. Mas eu não sou cool. Eu não estou na moda. E eu não tenho grupos de incontáveis amigos.

Como todo escritor para escrever, deveria falar sobre coisas que vivencía e entende, eu passo agora a descrever as pessoas que eu conheço, com sentimentos muito bem conhecidos, tentando trazer conforto a elas, depois de serem tão negligenciadas por escritores que preferem ser cool e da moda. Passo a escrever aqui sobre aqueles que sozinhos seguem, perdidos no meio da multidão. Seus sentimentos, expectativas e emoções. Dores e desamores. Pessoas que você vê dentro do ônibus com a cabeça encostada contra o vidro, mas que não repara ou não dá atenção. Pessoas que sufocam a agonia da solidão, preenchendo a vida com futilidades.

Almas assim. Almas irmãs.
Passo agora a falar de vocês.

Saturday, June 30, 2007

Sofia Vai Casar


Sofia vai Casar

Prólogo.

Ela caminhava por aquelas ruas do bairro, vestindo seu vestido florido naquele final de tarde de setembro. Não pensava em nada de importante, tendo sua atenção somente desperta por aquilo que a rodeava. O clima úmido e quente, o vento que vinha do mar, aquele céu de azul profundo sem nenhuma nuvem.

Caminhou então até a Vieira Souto, e cruzou a rua para chegar ao calçadão. Encarou a praia. Algumas pessoas já estavam se preparando para deixar a praia a essa hora, enquanto outros grupos se mantinham ali. Sentados na areia, ela viu vários casaizinhos abraçados, trocando beijos e olhando longe ao mar.

Ana tirou sua sandália e desceu para areia. Caminhou lentamente por aquela praia de Ipanema, lembrando versos de Bossa Nova que cantaram inúmeras vezes o bairro. O vento que bagunçava seu cabelo e quase levantava a saia de seu vestido parecia não lhe importar. Pelo contrário, ela sentia um prazer tão sublime, que sorriu, tirando o cabelo do olho, e ajeitando-o por trás da orelha.

Sentou-se próximo ao mar, e cruzou os braços por cima do joelho. Seu olhar se jogava longe ao infinito, observando o por do sol, e sua cabeça ora distraída agora se concentrava na sua própria vida, como se ela passasse na sua frente como um filme. Filme piegas e de muito mal gosto! Não a agradava. Ela tentou afastar esses pensamentos de sua mente, e virou para o lado.

E o viu.

Ele, vestindo uma calça marfim e bata branca, com a barba por fazer e o vento balançando seu cabelo castanho. Tão perfeito! Ele caminhou até ela, parando de pé ao seu lado, e sorriu.

Wednesday, April 18, 2007

A Menina do Dedo Podre.

Capítulo 02
Pantufas


Depois de quase uma hora presa no trânsito infernal, enfim, chegou em casa. Morava, na Rua Paissandú, num apartamento antigo que tinha herdado de uma tia-avó, há dois anos. Antes disso, dividia um apartamento de dois “quartos” no Catete com Guilherme, onde um quarto era úmido que nem um porão e com vista exclusiva pro apartamento de um coroa naturista, e o outro parecia mais uma despensa, de tão apertado.

Desceu na praia do Flamengo e foi andando até seu prédio. A portaria antiga feita de mármore dava uma idéia de como devia ser o bairro há 40 anos atrás, hoje em dia sufocado por carros e buzinas. Entrou no prédio e cumprimentou o porteiro carrancudo.

- Boa noite Seu Candido.

- Boa noite, - respondeu seco o implacável porteiro. Ele trabalhava no prédio praticamente desde quando ele foi construído, e justamente a sua atitude que ele chamava de “profissionalismo”, o manteve tanto tempo ali. Ele não se importava com a vida alheia, mas sim em fazer bem o trabalho para que foi contratado.

Carolina correu para alcançar o elevador que acabara de fechar a porta. Entrou apressada e deu “boa noite” à velhinha que estava ali dentro. Era uma senhora que parecia beirar os oitenta anos, e morava no apartamento embaixo do dela. Tinha um ar meio excêntrico, sempre maquiada e com seu poodle toy debaixo do braço.

O silêncio dominava o ambiente, e a velhinha tinha o olhar implacável e concentrado na porta do elevador. Carol, distraída, ficou reparando na velhinha, na sombra azul carregada, no seu batom vermelho sangue, no perfume que mais parecia um misto de naftalina com Yves Saint-Laurent. O elevador parou no sétimo andar, e Carol foi acordada por um boa-noite praticamente inaudível, vindo da boca daquela senhora.

- Boa noite. – respondeu ela, mas a porta do elevador já tinha batido e agora subia para o oitavo andar.

Pegou a chave dentro da bolsa, e andou pelo corredor, rumo ao apartamento 803. Destrancou a porta, e com um suspiro acendeu a luz. Olhou bem o apartamento vazio ao seu redor e trancou novamente a porta.

Antes de entrar no apartamento, tirou o sapato, abriu a bolsa e tirou a sua pantufa nova de dentro. Calçou-a. Em seu quarto, jogou a bolsa e sua roupa de qualquer maneira em cima da cama, e foi tomar um banho. Vestiu seu pijama e um robe estampado de ideogramas japoneses, e se sentou no sofá da sala pra ver televisão. Estava na hora da novela das sete.

No intervalo comercial, entediada, e depois de ter comido meio pote de sorvete, Carolina virou a cara, e bateu o olho na sua pantufa velha e esfarrapada que jazia ao lado da soleira da porta. Então, com o pote de sorvete equilibrado em cima da barriga, ela lembrou da previsão praticamente mediúnica que Guilherme tinha feito mais cedo. Ela se apavorou. Tinha se tornado a própria velha frígida que morava no andar de baixo. Só faltava um cachorro debaixo do braço e uma maquiagem exagerada!

Desesperada, ela passou por cima da preguiça e da falta de disposição pra sair e ligou para Guilherme.

- Me pegue às nove.

A Menina do Dedo Podre.

Capítulo 01
Sexta-Feira a Noite


Eram cinco horas da tarde. O sol queimava impiedosamente as pessoas lá fora, e apesar de ter chovido de manhã, aparentemente ia ser uma noite clara. Tão conveniente para sexta-feira a noite! Carolina olhava as pessoas da janela, tão apressadas, correndo, ou tentando correr, o que deixava o trânsito ainda mais caótico. Fez uma cara de desdém e deu as costas para a rua. Deu uma bebericada no café que estava segurando e voltou para a sua mesa. Sentou-se calma e relaxadamente, apoiando as costas no encosto da cadeira e fechando os olhos. Quando preparava-se para tomar mais um gole do café, seu celular tocou. Desajeitadamente, Carolina colocou a xícara em cima de uns papéis que estavam em cima da mesa, e tentou tirar o celular do bolso do jeans.

- Merda, porque eles fazem esses bolsos tão apertados?

Conseguiu enfim tirar o celular do bolso, sem ficar com a mão entalada e precisar passar vaselina nela. Levou o celular ao ouvido sem sequer olhar o identificador de chamadas.

- Alô?
- Caralho, Carol! Por que demorou tanto pra atender esse telefone? Tava trepando no horário de expediente? - disse a voz do outro lado da linha, irrompendo em risadas.
- Guilherme
?
- Não, sua mãe. - Carol ficou em silêncio - Claro que sou eu, mulher! Queria saber quais são seus planos pra hoje a noite.
- Eu estava pensando em pegar um filme, abrir um vinhozinho, e...
- Vai ter alguém com você? - disse Guilherme interrompendo bruscamente a fala da outra.
- Não, mas eu to louca pra...
- Ah! Significa então que você vai calçar suas pantufas, colocar um roupão por cima do pijama, assistir novela e brincar de velha frígida.
Carolina olhou pra sua mesa, onde estava a sacola da loja onde tinha acabado de comprar pantufas novinhas. O rapaz prosseguiu.
- Eu tenho uma idéia muito melhor, e que condiz muito mais com uma pessoa da sua idade numa sexta-feira a noite.
- E qual é?
- Vamos a um coquetel na loja nova da Taeko Kiz. em Ipanema. Já coloquei seu nome na lista. E eu não aceito não como resposta.
- Mas eu não...
- Ai, amiga, tenho que ir agora - disse ele, cortando novamente - Me liga quando você chegar em casa pra eu poder te pegar. Beijos!
- Gui?

Ele já tinha desligado o telefone. Carolina então se jogou contra o encosto da cadeira e fechou os olhos. Estava pensando no martírio que seria ter que sair de casa, e decidiu não ir. Depois encontrava uma desculpa boa pra dar ao seu amigo.

Abriu os olhos, pegou a xícara de café e deu uma golada. Quando olhou para a mesa, viu que tinha manchado os papéis que tinha deixado ali, com o fundo da xícara de café.

- Merda!

Ainda com a xícara de café na mão, tirou um lenço de papel da bolsa, molhou a ponta dele com uma lambida. Colocou a xícara de café na beirada da mesa, longe dos papéis, e começou a esfregar aquela mancha redonda em cima do seu artigo. Esfregou suavemente, mas vendo que a mancha não saia, esfregou com mais raiva do que vigor, fazendo a mesa balançar, até que sua xícara caiu em cima da sua perna.

- Merda! – gritou, estressada. Pegou sua bolsa do chão e levantou com pressa.

- Pra mim chega por hoje. Estou indo pra casa!

Sunday, April 01, 2007

Pôr-do-Sol


Eu estava ali, sentado. Um dia tão bonito tinha terminado, e o sol se pondo me fez lembrar das coisas que eu nunca tinha reparado ou dado qualquer valor. O vento refrescante que bagunçava meu cabelo se unia a mim, me fazendo companhia, como um velho amigo que há muito não via, e que agora vinha tocar minha pele com seus braços.

Sorri. Dava pra ver a cidade inteira, que fervia lá embaixo com pessoas sempre tão ocupadas a ponto de não notar a beleza que os cerca. Dali de cima é que consegui perceber como são tão pequenos e insignificantes."Tolos", pensei eu, e sorri novamente.

Fechei os olhos. E me ocupei em sentir e ouvir o silencioso mundo que me cercava. Tudo era tão mais calmo dali de cima!

Ainda de olhos fechados abri meus braços. Era como se aquele ruidoso silêncio me envolvesse, me consumisse. E me consumindo, me completava. Às vezes o som do vento vinha quebrar aquele envolvente feitiço silencioso, me fazendo abrir os olhos para contemplar o majestoso pôr-do-sol e me inebriar no calor de seus raios que vinham acariciar minha face.

Juntei as mãos ao peito. Um desejo crescia dentro de mim. Ansiava por tornar-me Um com todas as figuras que me acompanhavam agora. O Vento... O Sol... E aquele ruidoso Silêncio.
O Sol dava seu ultimo suspiro no horizonte, e agora parecia me chamar.

Abri meus braços, e pude sentir todas aquelas coisas me abraçando.
Pulei.

Então sorri novamente.

Tuesday, March 06, 2007

Fadiga e Ócio

Existem certos dias em que não se tem vontade de fazer nada. Simplesmente nada. Parece que alguma coisa drena as suas energias deixando somente a fadiga, o cansaço. Cansaço pra fazer qualquer coisa, até existir. Sérgio estava num desses dias: apesar de ter planejado um dia antes tudo o que iria fazer, as coisas que precisava resolver, quando o seu relógio despertou às nove horas da manhã ele simplesmente o desligou, e voltou a dormir.

Quando acordou de fato, às onze, não conseguiu levantar de cara. Ficou encarando o teto do seu quarto com a mente simples e estranhamente vazia. Ainda deitado, virou para o canto e encarou a luminosidade que entrava pelas frestas da janela. Aquilo aparentemente dava mais cansaço no seu corpo já dominado pelo cansaço de estar cansado.

Cansaço de estar cansado. Quando esse pensamento lhe ocorreu, Sérgio percebeu que era isso. Cansaço de estar cansado... Ora! Mas estar cansado por que, se ele havia se tornado o próprio ócio? Levantou enfim. Caminhou lentamente, com passos arrastados até o banheiro, e se encarou no espelho. Aparentemente, toda vez que Sérgio encarava alguma coisa, sua mente anuviava e como se um vento soprasse a neblina, seus pensamentos desapareciam, permanecendo um vazio. E ficou se encarando por alguns minutos, até ter sua atenção desperta por sua barba por fazer e seu pijama desalinhado.

Pôs-se então a escovar os dentes. Despiu-se. Entrou no chuveiro. A água morna descia pelo seu corpo, e ele ficou ali, parado por algum tempo, sem nada fazer, só sentindo a água descer pelas suas costas. Ensaboou-se, enxaguou-se. Desligou o chuveiro, e enrolado numa toalha voltou ao seu quarto. Trocou de roupa, abriu a janela, ajeitou a cama e ali se sentou. Olhou para os seus pés, e sua mente se perdeu novamente por ali, mas dessa vez voou em pensamentos desencadeados simultaneamente, tendo ideias absurdas e filosofando sobre a própria vida.

De repente lhe ocorreu que essa fadiga não tinha razão de ser. De repente, esse cansaço todo pareceu-lhe tão sem sentido e de repente uma súbita disposição começou a surgir dentro dele.
- É hora de começar o dia, disse enfim.

Mas já passava das cinco da tarde.

Sunday, November 19, 2006

- Merda! Merda! Mil vezes merda!
- Credo homem! O que que te deu agora?
Marcelo olhou pra cara de sua colega de quarto com um olhar de desprezo por se sentir forçado a detalhar o acontecido. Ela logo supôs.
- Deu merda no encontro com a sua namoradinha?
- Ela não é minha namoradinha, - respondeu ele enfatizando aquela negação, evidenciando a sua ira - não depois de hoje, concluindo a frase com um suspiro. Então deixou-se jogar no sofá, ao lado de Regina, que espojada lia um desses livros de banca de jornal. Com o despertar de sua curiosidade, lançou o livro em cima da mesa de centro e se ajeitou no sofá.
- O que houve então?
- Olha, eu já quebrei muito essa minha cara, mas dessa vez tá sendo foda.
- Ué?! Desembucha logo homem!
- Bom, você sabe que eu tava muito a fim dessa garota, né? Pois bem, eu tinha planejado pedir pra namorar hoje, ia levá-la no cinema, comer alguma coisa, acompanhá-la caminhando até a casa dela, e em algum lugar do percurso, elogiar a noite, e fazer essa infâme proposta. Eu tinha tudo planejado!
Marcelo ajeitou-se no sofá, e como se tomasse novo fôlego prosseguiu eloqüente o relato.
- Pois bem, mas você me conhece né Rê? Você sabe que eu não me jogo de primeira, fico um pouco cabreiro, com essas coisas. Então eu tive essa idéia de testar, pra ver se ela tava tão a fim quanto eu.
Regina tinha toda sua atenção voltada ao relato de seu amigo, e percebendo isso, Marcelo com toda sua eloquência prosseguiu o relato.
- Nós estavamos a fim de ir juntos naquele showzinho que teve lá no arpoador sábado passado. Daí, eu percebi que a melhor forma de testá-la seria dizer a ela que eu não estava mais querendo ir. Enfim, eu disse a ela que deveria ir sozinha, e hoje ao telefone, ela me disse que ficou com um cara por lá.
- Caralho! Que escrota!
- Pois é, ela ainda por cima disse que só fez isso por vingança!
- Vingança de que?
- É que eu falei que eu não ia, ela ficou insistindo pra eu ir. Daí eu disse pra que ela fosse sozinha, e pegasse quem ela quisesse. Mas mesmo assim, até o último minuto ela me ligou no celular e me chamou pra ir junto com ela.
Regina agora olhava pra cara do amigo, que de coitadinho da história passou a ser simplesmente retardado.
- Você comeu merda Marcelo? Como você fala pra menina isso? Ela ainda por cima gostava de você!
- Mas ela não devia ter ficado com outro cara!
- Ah tá! Repara bem na situação: se tivesse sido o oposto, se ela tivesse dito isso pra você, o que você faria?
- Com certeza a mesma coisa, teria ficado no mínimo com umas vinte, só de sacanagem! Mas...
- Que "mas" o caralho! Retardado! Qual é a diferença, se ela teve uma reação esperada?
- É mas mesmo assim, não rola mais. Eu vou namorar uma menina que sai a noite, e fica com os caras? Pra que? Só se for pra ser chifrudo!
Regina contorceu a cara, e agora, definitivamente tomou o partido da menina.
- Ah! Mas eu sei que você gosta de sair também! Por que raios ela não pode sair também? Isso é um machismo escroto.
Marcelo ficou quieto.
- Chauvinista, retrucou Regina ao silêncio.
Marcelo ficou pensativo.
- Você vai ligar pra ela amanhã! Ah se vai!